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A desconfiança na medicina angolana e a busca de tratamento médico no exterior

Por: Osvaldo Lourenço, médico cardiologista.

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Importante: apesar de citar alguns casos, este artigo não tem como objectivo questionar a opção de muitos angolanos em procurar atendimento médico no exterior, sendo este um direito de qualquer pessoa. Também, apesar de descrever a opinião de pessoas ouvidas, não significa que pense da mesma forma e não tenho nenhuma intenção de questionar a competência de qualquer médico angolano ou a medicina angolana.

“Sempre que eu ou meus familiares tem algum problema de saúde procuramos sair do país para se tratar, o mais rápido possível” foi o que disse uma cidadã angolana enquanto estava fora do país. Ela continua, e mostrando grande preocupação me pergunta e ela responde, “ir à um hospital público em Angola? Nem pensar”. “Por isso”, diz ela, “se você tiver seu familiar doente em Angola, faça o possível de evacuá-lo”. Ela conclui dizendo, de forma resumida e sem saber que estava falando com um médico angolano, que ‘não confia nem nos médicos angolanos nem nos hospitais de Angola’.

Esta conversa recente com uma cidadã angolana é apenas uma de muitas que tive com angolanos que buscam tratamento médico fora de Angola. Na maioria dos casos têm-se ouvido críticas aos profissionais de saúde (médicos em particular) e, geralmente, citando situações específicas relacionadas à supostos erros médicos, diagnósticos clínicos errados, falta de ética e deontologia, etc.

Recentemente o caso de uma bem-conhecida jornalista chamou atenção da sociedade e levantou respostas e debates, nas redes sociais, principalmente de médicos angolanos. Segundo noticiado na ocasião, a referida jornalista foi internada em uma clínica de Luanda onde, supostamente, foi dado um diagnóstico errado de acidente vascular cerebral (AVC), comummente chamada trombose, diagnóstico que, supostamente, foi “desmentido” após a mesma ser levada de urgência para um país europeu.

Não é raro ouvir-se de figuras públicas angolanas que, padecendo de um problema de saúde, procuram ou são levados para outros países em busca da cura. Mas não são só as elites que procuram atendimento médico do exterior. Penso que cada vez mais pessoas da classe média estão fazendo isto. Os países mais procurados, penso, são a Namíbia e África do Sul (talvez pela proximidade com Angola), Portugal e o Brasil.

Infelizmente, apesar de a maioria dos com quem tenho falado, referirem as precárias condições de atendimento médico nos hospitais públicos, a maioria diz que mesmo em hospitais privados (clínicas) a qualidade do atendimento médico nem sempre é dos melhores. No entanto, muitos também reconhecem que os médicos não têm a culpa toda e que a falta de meios de trabalho limita o que podem fazer.

Um outro aspecto me chama a atenção. Até alguns anos atrás, não era raro ver pacientes angolanos, em hospitais públicos e privados, preferirem ser atendidos por médicos estrangeiros (brasileiros, cubanos, etc.) em detrimento de um médico angolano. Eu mesmo presenciei algumas situações destas. Hoje verifico que existe um aumento nas críticas até para estes médicos. Não é infrequente ouvir pacientes reclamando de supostos erros cometidos por médicos estrangeiros que exercem em Angola.

É óbvio que estas observações têm certos vieses e que não existem estudos que avaliam o grau de satisfação dos pacientes em Angola e a confiança destes nos médicos angolanos. Por isso não é possível tirar conclusões estatisticamente válidas. Também é verdade a narrativa de que a qualidade do atendimento do médico, como de qualquer profissional de saúde, se insere no contexto em que o mesmo está inserido, ou seja, das condições que disponibilizados para o seu trabalho.

A minha opinião sobre a medicina angolana

Em qualquer lugar existem profissionais competentes e profissionais incompetentes. Logo não se pode generalizar as críticas, misturando todo mundo no mesmo “saco”. Entretanto, acho que é importante que os médicos que actuam em Angola comecem a debater em fóruns próprios (congressos da classe, por exemplo) estas questões. Algumas questões que posso levantar são:

  1. A procura de atendimento médico no exterior do país resulta apenas da falta de condições nos hospitais? Ou também refletem uma falta de confiança na qualidade dos profissionais de saúde (médicos) em Angola?
  2. Se for o caso, como se pode recuperar a credibilidade dos médicos angolanos e a confiança dos pacientes nos hospitais do país?
  3. É possível, para os médicos em Angola, exercer uma medicina que basicamente atenda ou resolva os principais problemas de saúde que reduza a necessidade de busca de atendimento no exterior?
  4. Até que ponto o médico deve recomendar ao seu paciente buscar atendimento no exterior, quando muitas vezes resulta em enorme sacrifício financeiro para a família?
  5. Como melhorar a qualidade dos serviços prestados para que procedimentos de diagnóstico e tratamentos mais complexos possam ser realizados no país, sem necessidade ir ao exterior?

Precisamos reconhecer que a medicina angolana precisa avançar muito. Existe ainda uma limitação enorme na disponibilidade de especialistas e de meios de diagnóstico e tratamento. Muitos casos de alta complexidade não podem ser resolvidos em Angola, ou os centros que podem não são suficientes para atender a demanda. Nestes casos, é indiscutível a necessidade de se procurar ajuda médica no exterior e acho que seria injusto falar em falta de confiança. No entanto não é raro se deparar com casos que certamente poderiam ser resolvidos no país, poupando assim os sacrifícios que as famílias fazem e reduzindo a saída de divisas, principalmente em momentos de crise.

Existem alguns casos que notoriamente poderiam ser resolvidos em Angola e até os pacientes talvez saibam disso. No entanto, quando se pergunta porque não tratou em Angola, a resposta mais frequente, mesmo que nas entrelinhas, é: “não confio nos médicos em Angola”. Noutros casos, os pacientes são encaminhados para uma avaliação diagnóstica ou para um tratamento sem o mínimo de avaliação prévia para o referido problema em Angola.

Para dar um exemplo esclareça o que disse, deixa citar o caso de um paciente que foi diagnosticado com “problema na tireóide” e “arritmia grave no coração” num hospital privado. O paciente foi orientado a ir para o exterior do país com “urgência”. No entanto, o mesmo não havia realizado nenhum exame para avaliação da função da glândula tireóide (TSH, T4 livre, T3, por exemplo) e nem um electrocardiograma de repouso (de 12 derivações) ou Holter de 24 horas. Se todos estes exames podem ser realizados em Angola, porque não fazê-los? Será que o próprio médico não confia nos exames realizados em Angola? Se tivesse feito estes exames em Angola talvez teria evitado que o paciente fizesse gastos desnecessários, uma vez que depois realizar tais exames se mostrou que o paciente não tinha nenhum destes problemas.

Um pilar que garante confiança na relação médico paciente é a boa comunicação do médico com seu paciente. Eu verifico que alguns pacientes procuram atendimento médico no exterior por não se lhe explicar claramente o seu problema. Por exemplo, há pacientes que dizem que passaram em ‘vários hospitais e médicos em Luanda e ninguém descobria o seu problema ou diziam que estava tudo bem’ e que, segundo eles, só se descobriu a doença na Namíbia ou no Brasil. Ao verificar os exames é possível, nalguns casos, encontrar exames realizados em Angola que já davam o diagnóstico. Será que o médico não conversou o suficiente ou não foi claro? Ou será que o paciente é que não confiou?

Claro que algumas atitudes do médico podem reduzir do paciente. Por exemplo, é frequente o paciente ouvir do seu médico que o exame “está tudo bem”. O paciente talvez se pergunte: “se está tudo bem, porque sinto estas dores?”. É claro que para o médico o está “tudo bem” significa que, para aqueles exames, não foram constatas alterações. Para o paciente, porém, o “está tudo bem” quer dizer que literalmente está tudo bem, ou seja, que com os exames que o médico realizou, todas as possíveis doenças foram investigadas e deram negativas. Assim, se os sintomas persistem o paciente começa a desconfiar do médico e talvez a procurar solução fora do país.

Assim, concluindo, cada vez mais angolanos buscam assistência médica no exterior, uns com problemas de alta complexidade e outros problemas menos graves que poderiam ser tratados em Angola. Vários são os motivos da busca de uma solução no exterior, mas cabe a nós profissionais avaliarmos até que ponto esta “fuga” para o exterior representa uma falta de confiança na nossa medicina e como podemos todos podemos contribuir para uma medicina angolana resolutiva, em que os pacientes confiem. Que se possa continuar trabalhando para que procedimentos complexos sejam realizados no país.

Especialidades: Bioética , Medicina Interna Palavras-chave: , , ,

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